O concreto vai bem, obrigado. E aos poucos se mistura a este sangue de água de coco. Os sonhos com a Bahia ainda perduram. E são sempre os mesmos: os pés enterrados na areia morna, o corpo relaxado sobre uma decrepita cadeira amarela de plástico, o sol queimando a pele, a visão se turvando ao ritmo de ondas ruidosas e da cerveja que esquenta rapidamente.
Mas como disse, no concreto está tudo tranquilo. A riqueza cultural (ou etílica?) me faz esquecer os espetáculos diários do entardecer. E já não me recordo de tantas coisas mínimas. Para reativar essas lembranças, faço algo meio medíocre: mato saudades das ruas sujas onde vivi com o Google Street View.
Uma mania irrecuperável essas nostalgias. Sofro tanto desse mal que, se um dia for acorrentado e chicoteado por 10 anos seguidos, tenha certeza que ao ser libertado, terei saudades do meu carcereiro.
Sigo em frente, pois novas esquinas precisam ser descobertas, vividas. Mesmo que as novas me lembrem das antigas. Para esquecê-las, me apego às paredes. Nelas há arte de rua que sempre evoca uma liberdade surreal impossível na vida, mas bem lógica nos sonhos. E como costumo acreditar, para sonhar não é necessário dormir. É só estar bem consciente. Basta abrir os olhos, e lá estão os pequenos detalhes mágicos que todos ignoram.
Exercito essa ideia ao acordar. Vejo e ouço a sinfonia de carros, pessoas e helicópteros que sobrevoam nossas cabeças a cada instante. Ruídos desconexos da urbe que se unem aos ruídos desconexos de pássaros cantantes que vivem nas parcas árvores que ainda teimam em viver na mixórdia sintética do asfalto. O concreto me seduz e seus maiores representantes são os prédios antigos.
Vejo-os como gigantes vivos e sonolentos. São velhos decadentes que parecem observar com suspiros no olhar. Eles têm certo enfado por ter vivido plenamente dias melhores. Mas gosto deles mais do que os novos. Tanto que estou morando em “um senhor bem antigo” que “uiva como fantasmas de castelos europeus”, tamanho é a força da corrente de vento que assobia entre as janelas. De quebra e se bem concentrado, dá para sentir a vibração dos acontecimentos do passado.
Como disse em outro momento, foi fácil encarar tudo. Na verdade, foi fácil porque tenho incutido na mente essa ideia mágica de que os lugares amontoados de gente de todos os cantos clamam pela minha presença.
Desvendei um clichê: o termo “selva” é real. Não pelo lado selvagem, mas pela quantidade de “espécies” e “floras” de pessoas. Rostos dos mais diversos, dos mais acentuados, narigudos, triangulares, peles opacas, morenas e negras. Ruivos sardentos de crespo cabelo. Índias bolivianas de pernas curtas. Negras altas e charmosas. Asiáticas de pupilas negras e olhos rasgados.
A cidade se mostra em múltiplas culturas e crenças, mas muitos a desprezam. Principalmente os que se proclamam “abastados”. Estão cegos pelo trabalho, pelos seus problemas e até pelo preconceito descabido por sua própria cidade (além de outros estados, lógico).
Os que assim pensam, mesmo os jovens, são velhos decrépitos que desprezam seus próprios semelhantes. Mas não é isso que gostaria de me apegar, pois minha função é desvendar histórias e contá-las do meu modo. Descobrir os segredos da cidade conhecendo pessoas, saindo às ruas, não perguntando ao Google. Essa é a meta.
Aqui, a vida é de vidro e passa sem ruído do outro lado da janela. Tudo é uma paisagem que nasceu nas mentes de ricos descendentes de europeus e postas de pé pelas mãos calejadas de nordestinos descendentes da mãe África. As luzes sintéticas iluminam os sonhos consumistas. Apesar de tudo isso, existe amor em SP. O que não existe são estrelas.
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Do front, mando boas notícias, apesar dos muitos reveses. E só não desisto porque vim para morrer e renascer logo em seguida, dia após dia, indo além da negação e do medo, que me fará sobreviver ao fim. Há muitas provações, mas também há muitas recompensas neste caminho pedregoso. E é apenas o começo...
2 comentários:
Saudades de Você meu Broder, aprendi muita coisa com você. E que essa selva, seja cada vez mais selvagem para você! Ninguém derrota o que não tem medo!
Valeu, meu velho. Vida longa e prosperidade sempre!
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