Subúrbios

segunda-feira, outubro 16, 2006

Gosto de ouvir o despertador do celular. Um toque que remete a uma voz robótica. Diz algo incompreensível. Apenas 2 horas e 30 minutos de sono. Não deu nem tempo de entrar no R.E.M ou um sonho rápido. Sonhos: o primeiro lugar virtual que o homem presenciou. Imersão tão parecida com a realidade que nenhuma tecnologia conseguiu reproduzir.

Ainda.

Só resta acordar com tudo. Hoje é dia de ir ao subúrbio, visitar parentes, conversar e comer sua comida farta. O dia ganhando força. No banheiro, o assassinato digno de filme policial do meu xampu, que cai pela janela e se espatifa lá embaixo. Minhas mãos seguravam com mais cuidado as coisas. Não seguram mais tão bem. A atenção, também se esfarela com a soma da idade. Irresponsabilidades que ecoam desde a adolescência vadia e vagarosa.

Saudades dos meus headphones. Fazendo de conta que a vidinha medíocre é um filme indie europeu com trilha sonora bacana. Pilhas caras demais para um dinheiro que deve ser empregado tão somente em locomoção pela cidade. Pilhas caras demais para alimentar essa fantasia ridícula de que a vida é um filme ou um videoclipe. Vamos ouvir as pessoas indo pra lá e pra cá então.

Ou criar suas próprias melodias com sua famosa e graciosa banda mental, top 10 por anos a fio no seu mundo imaginário. Concentre-se nas minhocas e formigas. Tire sua energia e felicidade dentro do seu próprio corpo. O mundo é para os fortes de espírito que não se deixam ser enganados por bobagens fantásticas.

A cidade vai ficando para trás. Arvores e arbustos são cada vez mais numerosos. O lugar é como um vale, que nos anos da infância, dava uma impressão de esperança e tranqüilidade. Uma pequenina cidade dentro da cidade. Hoje, meus olhos vêem só telhados velhos e descolorados, com algumas ruas sangrando água de esgoto pelo chão. É um clima de decadência inocente e desesperança tranqüila. Como um velho bem vivido á espera de uma morte bem trajada e perfumada. Misturo-me a poética decadência.

Esperando a comida, aguardando na varanda, os meninos brincam com bonequinhos de plástico, no mesmo lugar onde um dia eu também reinei. Pouquíssimos metros quadrados são suficientes para reinar em nossas projeções grandiosas, com aventuras mil e mirabolantes. Bem ali, me apaixonei pela primeira vez.

Um pezinho maldoso que gostava de esmagar minha mão suja de barro vermelho. Ajoelhado na terra, me lembro de seu sorrisinho maléfico e o sol forte atrás de seus longos cabelos cacheados. Sua carinha de má, fazendo a maior força do mundo, como se realmente fosse esmagar meus dedos. Eu fingia dor só para agrada-la....

Ela me beija no rosto com o mesmo entusiasmo de antes. Tenho barbicha suficiente para arranhar a pele, mas ela me beija como se ainda fosse aquele moleque doido por pipoca doce, que ela fazia muito bem. Na Itália, seria uma "Mama" mais que perfeita. Enorme em seus peitos, em suas nádegas, em seu porte físico grande e amoroso. É um tronco de uma arvore antiga e sábia como toda boa velhice deve ser. Está plantada aqui, suas raízes estão a muitos metros abaixo de onde estamos. É um insulto ela sair por ai, ir até nossas casas, espalhar sua boa conversa. É uma blasfêmia ela atravessar esses muros.

Prefiro vir regá-la com meu abraço e meus lábios em suas mãos. Gostaria de rega-la para sempre, de dar melhores coisas... Mas preciso considerar o tempo. E o tempo vai se acumulando em cima de nossas vidas até nos imobilizar. Chega um momento que é impossível carrega-lo. Mesmo assim, gostaria de rega-la pela eternidade adentro. 

Vi uma pipa dominar o céu suburbano. Fazia varias manobras e movimentos inconsequentes. Num momento de orgulho, de imponência, se desprendeu da linha. Perdeu-se sem rumo ao vento. Caindo e caindo. O sol laranja do entardecer pintando seu papel de ceda vermelha, comprado por alguns centavos, em algum armarinho humilde, por algum garoto humilde. Nascida na humildade, perdeu-se pela vaidade.

Voltando para casa, sonhei acordado através do vidro do ônibus. Descobri que, quanto mais belos eles são, mais doloroso é retornar ao real.