Jack London, O Chamado Selvagem e a linguagem das coincidências.

domingo, maio 23, 2010

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É sempre um êxtase terminar um livro de Jack London. É sempre amargo deixar suas páginas, consumidas sempre com muito alvoroço e uma voracidade animal. Amar Jack London e seus escritos é normal para aqueles que consideram suas palavras como pequenas, mas afiadas facas de contar histórias vivas e dilacerantes, que só mesmo uma mente genial poderia parir.

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Este é o caso de “O Chamado Selvagem” (The Call of The Wild), livro que adquiri nas minhas incursões poeirentas pelos saborosos sebos de São Paulo, amontoados de bons clássicos que cheiram a velhice e passado, que me levaram à lugares distantes, para ambientes de um tempo que não existe mais, com odores que me parecem mais chocolates meio amargos de boa qualidade. Boas viagens só possíveis através da mente. E todos (Oh meu Deus!) esses belos livros tem preços comicamente, absurdamente, vulgarmente baratos!

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A edição que adquiri, por exemplo, foi comprada por meros R$ 2,00! E ela não possuía data de edição, mas pela conservação e “amarelamento” de suas páginas, presumo que seja dos anos 70. Por esta obtenção, me sinto agraciado, pois essa jóia rara teve a tradução feita por ninguém menos que Clarice Lispector! E que tradução, diga-se de passagem! Só mesmo uma outra mente genial para traduzir coerentemente o visceral texto de London!

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Mas, falar do “Chamado Selvagem” é apenas a ponta do iceberg que são algumas boas coincidências, alguns acontecimentos em nossas vidas que se elevam ao patamar do inexplicável. E ler este pequeno livro, esta breve narração da vida de um cão em busca de sua própria verdade, teve uma importância levemente mística para mim. Tudo porque percebi que fatos e pessoas que cruzamos em nossos enredos pessoais, podem parecer vãs, ignóbeis e sem valor. E como o produtor J.J Abrams bem sabe, isso é só aparente.

Somente com o tempo percebemos que mesmo um rosto de um desconhecido que cruzamos na multidão de uma calçada de uma grande metrópole, que um livro que observamos alguém lendo no ônibus, que presenciar um atropelamento ou mesmo ver um velho escarrar no chão, pode sim, ser algo significante a ponto de mudar o curso da sua história de vida. Ou somente um ponto do tempo conectado a outro. Sim, acredito que tudo seja interligada de certo modo. Tudo se interliga!

Em minhas memórias infantis, que percorreram todo os anos 80, vivi metade dela no mundo real, nas ruas sujas, nos quintais de terra. A outra metade, passei lendo gibis, cutucando formigueiros e assistindo televisão. Posso dizer então que pelo menos 50% dessas memórias são virtuais, frutos de “aventuras na imaginação” e de horas em frente da “ama-de-leite-de-raios-catódicos-e-pixels”, absorvendo com afinco toda a sua “cultura pop de massa”, assim como uma esponja seca e limpa jogada em uma poça de lama.

Como a bola de linha de costura, usado por Teseu no Labirinto do Minotauro, marquei a passagem do tempo através de programas de auditório, das novelas, dos desenhos animados, das propagandas, dos humorísticos, em uma tentativa de não me perder, ou de perder os momentos e detalhes interessantes da minha história. Por estes “atalhos de pixels”, firmei minhas vivências e memórias, associando tudo o que acontecia a minha volta a esses sonhos que as antenas de poucos elementos captam no ar.

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Uma dessas memórias está em um episódio da série de animação Peanuts (No Brasil conhecido como ‘A turma do Charlie Brown ou simplesmente ‘Snoopy’) que marcou como ferro em brasa os recônditos da minha mente. Neste, o cachorro sonha que é levado para um lugar distante e gelado, além do conforto de sua casa e de suas regalias. Lá, é atado a um trenó de carga, forçado a conviver com cães selvagens e brutais. Leva inúmeras chicotadas por sua moleza. É mordido por seus rivais. Aprende a comer de tudo, aprende a brigar por comida e torna-se um líder raivoso.

Enfim, volta a sua natureza real e selvagem. Desperta para um mundo que o conforto tinha lhe cegado. Renasce em espírito em meio ao caos e a injustiça da vida dos animais de carga.

Mesmo sendo um desenho infantil, cheio de pequenas graças que nos fazem rir, eu sempre ficava estático frente à tv todas as vezes que esse episódio era repetido. A violência contida nele era algo profundo, algo que me hipnotizava e que minha mente de criança não tinha palavras e adjetivos para descrever.

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Era como uma energia que me levava para um lugar longe do mundo. Era como um portal para algum ponto do universo incompreensível. E como eu disse, precisei crescer em idade para compreender que o que via era somente uma janela para o futuro de minha própria existência. Nos momentos de reprise, minha alma de criança visitava meu futuro de adulto.

Lendo “O Chamado Selvagem”, a sensação de deja-vu surgiu. A lembrança de “What a nightmare, Charlie Brown!”, veio à tona. A história já não era nenhuma novidade. A surpresa do tempo, a peraltice do destino, o outro lado do portal temporal. Agora eu era o futuro olhando nos olhos do meu passado. Agora eu compreendia.

A pergunta é: Por qual razão o desenho me chamava a atenção? Por que anos mais tarde, entre milhares de livros em uma estante velha, escolho justamente esse, sem nem saber do que se tratava?

Os acontecimentos, as situações, as pessoas. Perceba, tudo que está dentro do universo, tudo o que existe diante dos nossos olhos, neles há uma estranha linguagem que se manifesta.

A revista “Personare” sinaliza e explica de maneira acertada tudo o que eu, até o momento tentei confusamente explicar:

“Aquilo que consideramos aleatório, representa nossa incompreensão diante dessa linguagem tão ampla. Ao estar mais atento à sua vida, a essas coincidências e sinais, é possivel utilizar esses conhecimentos para viver de maneira mais leve, fluida e harmoniosa. O universo sinaliza de diversas maneiras o fluxo de nossa vida. Alguns sinais são mais visíveis e perceptíveis, outros mais sutis e mais difíceis de serem captados”.

A mágica de estar vivo vai além do óbvio. Vai além de uma compreensão simplória de tudo ao nosso redor. E sinceramente, sempre acreditei que ser evidente é ser pobre de espírito. Cultivo assim, o olhar além do olhar.

E como a própria Clarice Lispector, escritora/tradutora formidável dessa obra que acabo de ler diz:

“Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar, um aspecto, às pontas dos dedos um objeto – e é para lá que eu vou. À ponta do lápis o traço. Onde expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou !”.

O que recomendo? Leia o livro, aguce seus sentidos e vá para onde o obviedade não existe. Pois é justamente para lá que eu vou!

Assista “What a nightmare, Charlie Brown!”: