Um precipício chamado você

segunda-feira, maio 19, 2014

 

 Largo de Santana - Rio Vermelho - Carybé

 

Voltei à Bahia cheio de saudades. Em igual quantidade, dúvidas sobre melhores rumos. É aquele momento de reboot na vida que se despedaça em diversos cacos cortantes de problemas. Um peso de reveses que se acumulam na mente, com ares de quase insolúveis. Matar saudades tem seu lado bom para o sangue e a mente. Mas também há o lado ruim, de reafirmar pequenos contratempos que insistem pairar sobre o local que se ama.

A Primeira imagem da janelinha do avião: o bairro do Rio Vermelho ao longe. Ali estão guardadas  enredos adormecidos que dariam um milhão de histórias e que sempre se interligariam de algum modo. Fantasmas e eventos que insistem sempre no mesmo cenário.

Do alto, identifico cada mísero canto e curva, não só do bairro, mas de toda a soterópolis (gentílico criado a partir da tradução do nome da cidade para o grego, ou seja, "cidade do Salvador", composto de Σωτήρ ("salvador") e πόλις ("cidade"). Vivi muito nessa sinuosidade de ruas e culturas, de ladeiras e becos, de mar aberto e carros estacionados nas calçadas. Salvador, a cidade, apesar de uns retoques sonsos em sua estrutura, continua decrepita. As mesmas pessoas loucas andam em um desvario sem tamanho, seja a pé, ao volante ou dentro dos ônibus coletivos.

São dezenas de motivos para odiá-la. Mas também, tantos outros para beijá-la na face morena. A pele pinicando de calor, com o peito derretendo em suor, o ódio. Os amigos que embalam o coração, o amor incondicional. Mixórdias de sensações esquisitas que me tomam a alma. Precisava olhar no espelho do passado na tentativa de compreender o presente volátil.

Escrevi no Twitter:

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O medo de ser um forasteiro na própria cidade estava todo o tempo comigo. E é algo comum para quem abandona o seu chão para tentar viver sonhos mais duráveis, para os que querem acender a vida com mais acontecimentos marcantes. Ou simplesmente, ir onde o trabalho e o dinheiro está.

Todo retorno é um exercício de julgamentos diversos. A dualidade aumenta em proporções gigantes. As comparações vão e vem aos olhos indiscriminadamente, é inevitável.  Lá tenho o calor do sol e dos entes queridos. Aqui, o frio do céu e a variedades de trabalhos/diversões. A praticidade e a necessidade responde as questões e cala o pensamento poético sobre viver na terra que te pariu.

O grande Waly Salomão definiu muito bem os conflitos das idas e retornos em seu “Poema Jet-Lagged”, do livro "Algaravias", de 1996:

"Viajar, para que e para onde,
se a gente se torna mais infeliz
quanto retorna? Infeliz
e vazio, situações e lugares
desaparecidos no ralo,
ruas e rios confundidos (...)
Mas ficar, para que e para onde,
se não há remédio, xarope ou elixir,
se o pé não encontra chão onde pousar,
(...)
se viajar é a única forma de ser feliz
e pleno?"

(Aqui, faça uma pausa, vale a pena ouvir a voz louca de Waly declamar o texto ao som de “Vapor Barato”, da Gal, no documentário Jards Macalé - Um morcego na porta principal):

 

 

 

O drama é antigo, não há novidades: saia da casa dos seus pais em uma cidade pequena, mude-se para um grande centro. Se um dia retornar, não se assuste com a sensação de viagem no tempo. E praticamente tudo, estará no mesmo lugar. Não se passaram anos, só apenas alguns segundos. Você sai com pessoas, bebe com elas e, no dia seguinte, quando você vai embora, retornam ao limbo do passado, dos sonhos. São como seres oníricos que tomam vida por 24 horas. Te abraçam forte e dizem: “Se eu não te ver mais, boa sorte na vida e  faça uma boa viagem”.  

Com a mesma proporção de emoções, revi minhas coisas. Explico: deixei minha vida material de acúmulos na casa de minha mãe. Como um santuário, o lugar tornou-se um backup dos meus livros, CDs , revistas em quadrinhos e da infância. Formaram minhas opiniões, meus conflitos, minha base. Como um devoto que paga suas dívidas aos santos,  eu os revi, reli, e os venerei.

Nessas horas, o que realmente muda de verdade? Apenas você, com sua percepção limitada de mundo. E nas chuvas quentes, repletas de ventos que gritam pelas frestas das janelas como gatos brigões, a percepção que o ontem não pode nos aprisionar.
Sempre repito a música preferida que meus ouvidos gostam de ouvir. Em outras palavras, do alto dos meus trinta e poucos anos, talvez possa dar um bom conselho para quem vive o mesmo momento:

Não deixe, oh querido peregrino, que o seu passado invada sua vida.  Não se apaixone por esse corpo voluptuoso de memórias encantadas. Há o pulso, a energia do dia quente de hoje, te chamando para as escolhas infinitas que o agora traz.

O mundo te culpa, mas há sempre uma boa saída. Ou má, quem sabe. Apenas mude de lugar, de posição. O novo não se esgueira nas sombras da mesma rua que você passa desde a tenra infância. É preciso ir, morrer de saudades, para então voltar forte como um bezerro recém chegado ao curral. Pular de alegria pela rotina divina que agracia a vida de quem sabe olhar o encanto microscópio das coisas.

Eu te provoco peregrino, pois sua vida não pode ser um meme, uma cópia de outras histórias. Tornar-se único, verdadeiro, sentindo-se pleno com o que conseguiu até agora, é sua melhor meta. Repita e repita, até o mantra fundir-se nas células do seu corpo: não sou o outro, não vivi as mesmas oportunidades e complicações do outro, e, por isso, é impossível qualquer comparação. Construir e desconstruir a própria história até a exaustão é preciso.

Fazer café sem coador deixa o gosto mais encorpado, dizem. Para esperar o pó sentar no fundo do bule, só é preciso um pouco de paciência. É a vida, e não há quem possa contra suas leis universais. Exerça a sabedoria de esperar a borra baixar e, em seguida, desfrute da melhor bebida de todos os tempos.

Saia. O sol, a chuva, o calor e o frio te esperam no bosque, na cidade, na praia, no asfalto, na lama. A vida te chama para pular no precipício que leva seu nome, para encontrar sua essência, o seu coração, lá no fundo do abismo.

E não, peregrino, não é hora de voltar.

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Imagens: cenas do filme “State Garden”, de Zach Braff.