Uma chuva

quarta-feira, julho 13, 2011

deniac-gerard-russorain

 

"Ela está bem ao meu lado. Dorme, cabeça recostada em meu ombro. Estamos no banco traseiro de um táxi qualquer. Viro-me para sentir seu cabelo próximo ao meu nariz. Respiro fundo e delicadamente. Há uma consistência macia, um cheiro forte de xampu e condicionador, uma energia como se estivesse vivo.

Toco com as pontas de meus dedos. Ele escorre pelo seu rosto, pela sua pele, pelos seus 17 anos ainda não completados. Um cabelo vivo e belo. Um sonho noturno com odores de rosas que desabrocham ao sereno, enquanto todos dormem, sorvendo a madrugada fria sob o comando da Lua.

O táxi vai devagar. Não, não que seja devagar, ele parece voar, isso sim. Parece não ter nenhum atrito com o asfalto. O mundo lá fora, todo em câmera lenta. O vento sopra delicado. Ela dorme no meu ombro. Um sonho sonhando.

Ela torna tudo diferente ao redor. É capaz de transformar o comum em algo precioso e raro. E é através do vidro da janela do taxi que vejo o mar na escuridão. Suas ondas quebram dentro dessa noite encantada. Eu me sinto bem, eu já disse, ela é um sonho. Não me canso. Um sonho de um solitário, de um coração tal qual pássaro sem pernas, cansado de voar, louco para pousar na segurança de uma palma da mão tranquila. E ela, com seu cabelo vivo, está ao meu lado. E ela, quem sabe, pode salvar minha alma suja.

Então, a suave noite vai mudando. Do céu caem gotículas de chuva fria. Fina e fria. Pequenos anjos errantes, caindo de nuvens gordas e distantes. Aglomeram-se e escorrem pelo carro. Lavam a cidade e suas feiúras. Banham as ruas com uma calma passageira... Justamente nesse momento ela acorda.

Coça os olhos e ergue-os até meu rosto. Ela ri com o meu riso. Suas pupilas, de tão negras e reluzentes, podem refletir meu rosto bobo. Abraço-a ainda mais forte. Trago ainda mais para perto, sua cabeça dorminhoca.... Como se em vão quisesse misturar seus pensamentos aos meus. Transformar nossos pequenos universos, tão próximos e ao mesmo tempo tão distantes, em um só.

Ela se desculpa pelo rápido cochilo. Eu só consigo rir. A casa dela se aproxima. Beijo-a longamente pela ultima vez nessa noite e na vida. Desço do táxi para me despedir. Seu vestido longo e negro dança com o vento. A chuva cessa e as estrelas brilham. Ela diz “Tchau”. Nossos lábios se tocam rapidamente. Então penso naquela canção favorita. Mas ela nunca toca quando se precisa. O jeito é imaginá-la. Tocando, tocando e tocando. Repetidamente.

Assim, lá vai ela. Sonho vivo e real. Sobe as escadas até o portão. Abre-o e some dentro de seu lar. Volto para o mesmo lugar no carro. O assento do banco ainda quentinho, quentinho...

O motorista me leva para casa. Categorizo em pensamentos esse momento como puro. Singelezas que a vida moderna oferece muito raramente para pessoas que pensam viver em vídeoclips... Como eu.

Segundos, um por um, serão lembrados em exaustão. Guardados para dias quentes e difíceis.

Meus olhos se fecham. As ruas passam e passam. Ruas bonitas em seu inicio e feias no final. Uma graduação que vai do “alto”, partindo de seu bairro, até o “baixo”, chegando ao meu. Milhares dessas ruas separam nossas vidas. Milhares de costumes, de amigos, de pertences, de tipos de comida, de lugares que se viaja, de escolas que se estuda, de futuro perfeito imaginado por pais com sobrenomes importantes separam nossas vidas. E ao abrir os olhos, essa noção de realidade desprende-se em forma de olhos úmidos.

A chuva desprende-se do céu mais uma vez. E o mundo já não era assim tão belo. Molhava o asfalto de leve e eu via as luzes refletidas, não das estrelas, mas dos postes e carros. E para cada gota que caia gelidamente do céu, existia um motivo para se meter as mãos nos bolsos e sentir o frio que não existia.

Um frio que emanava de algum lugar do corpo, de algum arrependimento, da lembrança de qualquer evento que ocorreu de forma insana e imprevista.

Sei lá, só um frio.

Mas bom mesmo era sentir com saudades, sim, já com saudades, o gosto de seus pequenos lábios misturados aos meus... E de repente pensei que dias tristes não tardariam em nascer.

Mas o agora, este agora divino e mágico, em breve vai refrigerar as agonias futuras. E eu vou guardá-lo para sorrir mansamente... Como nesse momento. Mesmo com o salgado gosto das lágrimas tentando afogar o meu sorriso pálido, marcado pelo ferro quente da mais completa satisfação.

 

E como disse, eu nunca mais a vi".

 

 

Ilustração: "Rain", de Gerard Russo

 

+ http://www.gerardrusso.com/

6 comentários:

Marilton Trabuco disse...

Você tá tomando o que? rs...
Brincadeirinha, eu li tudo velhinho... voce conseguiu me fazer ler o texto inteiro, sabe o que significa quando leio o texto todo? significa que é bom! Parabéns, bem poetico para alguem que ja se entitulou de "Selvagem"! Lembra (AM-Rockr!)

Libélula disse...

viajei aqui, garoto!

Jessica Rampazo disse...

viu só? não deleta não, fez sucesso :)

Deniac disse...

Marilton Trabuco: Pô velhinho, nem sabia que você frequentava essa budega virtual! Agradeço sua paciência em ler todo o texto e agradeço ainda mais por ter gostado! Mas só um adendo, assim como os brutos, os selvagens também amam! hahahaha

Valeu!

Deniac disse...

Van Meneghetti: continue viajando aqui, garota!

Deniac disse...

Jessica Rampazo: Ok, não vou deletar!