"Quanto pesa a carne? E quanto pesa a pessoa a través da carne em uma sociedade que nega e anula as pessoas? Na prostituição, mulheres e homens são meros objetos de consumo. Nas empresas não há pessoas, somente Recursos Humanos. Na época colonial, os escravos eram tratados como simples mercadoria, não como pessoas".
"A proposta consistiu em instalar na via pública a estrutura de uma balança de 2,50 metros de altura e permanecer oito horas preso dentro de uma rede de pesca pendurado semidesnudo há um metro do solo. Como contrapeso, 80 quilos de carne e ossos pendurados em outra rede a escassos metros de mim. Esperando… simplesmente esperando ver que sucedia com as pessoas, enquanto meu corpo se ia desidratando e a carne apodrecia baixo ao sol".
"Escolhi como lugar para realizar a ação, em uma calçada de uma praça localizada em pleno centro econômico da cidade de Salvador de Bahia, Brasil. Um lugar caracterizado pela poluição de bancos, empresas e universidades, e circulado diariamente por um grande número de pessoas, automóveis e ônibus".
"De um lado da balança, escrito com carbono, se podia ler PES(O)SOA DE CARNE E OSSO, e do outro lado, a pregunta QUE PESA MAIS ¿A PESSOA OU A CARNE? As oito horas que ia permanecer preso dentro da rede era uma referencia as 8 horas de jornada laboral em a qual as pessoas cedem diariamente 8 horas de sua vida a um sistema (uma rede) que lhes promete ter assim dinheiro para poder disfrutar das 16h restantes de seu dia. 8 horas diárias de perder de forma consensual, a liberdade".
"Finalizamos a montagem da estrutura da balança as 9 da manhã e pedi aos amigos que ajudaram-me, que se retirassem o mais distante possível do lugar evitando de essa maneira ser vistos pelos transeuntes, associados a ação. Sem nada a quem perguntar, as pessoas não tinham mais opção que aproximar-se e perguntar-me a mim. 'Que é isso? É um protesto ou é arte?' 'Que quer dizer?, nos diga!” foram algumas das perguntas que se repetiram com mais frequência. E frente a cada pergunta, simplesmente me limitava a observar-lhes com olhar silencioso. Pretendia com isso que as pessoas soubessem que os escutava, que não os estava ignorando, estabelecendo assim uma comunicação".
"Mas ao mesmo tempo, ao não dar-lhes uma resposta verbal, obtinha deles muitas mais perguntas e muitas respostas. “Está pagando uma promessa”, afirmavam alguns. “Ele não pode falar” disse um homem, e outro agregou “Ele somente fala com os olhos”. Inclusive havia uma senhora que afirmou que eu pertencia a uma religião que não come bovinos e que o que estava fazendo era expor-me a essa situação para assim pagar as culpas das pessoas, motivo por qual muitos me agradeceram. E inclusive me pareceu escutar que um homem se aproximou e pediu-me que o abençoasse, por motivo de que falou em voz baixa e em português, não pude entender bem se foi assim ou não".
"Outra pessoa tomou-me de objeto para começar a evangelizar aos que estavam ali presentes, reapropriando-se da ação. Dizia, com voz forte e amplos movimentos de seus braços, que o que estava sucedendo era “a pura verdade!” Que as pessoas estavam presas no vicio da carne. Algumas outras pessoas me preguntaram se tinha sede e se queria água, ao que respondia movendo suavemente a cabeça indicando que sim. Bebi da garrafa que aproximavam aos meus lábios e inclusive alguns me refrescaram o corpo já dolorido e com calor excessivo, embaixo ao forte sol do meio dia, deixando cair a água sobre minha cabeça".
"Como as horas foram passando e a carne perdendo seus sulco, pouco a pouco minha pessoa foi pesando mais e inclinando-se a balança para meu lado. Um idoso, se aproximou e me disse em voz baixa: “Ás 10 da manha, quando passei, os ossos e a carne pesavam mais. Agora, as 2 da tarde, que volto a passar por aqui, vejo que você pesa mais. Será que finalmente a sociedade está mudando?” Muita gente me rodeava e os que tinham mais tempo ali, respondiam as perguntas que me faziam os que recém chegavam, de maneira tal que se armou um debate entre eles".
"Uma mulher que se abriu passagem entre os corpos, se aproximou-se com uma garrafa para oferecer-me água. Logo de tentar que lhe respondera o motivo da minha ação e escutar que alguém lhe dizia “Ele leva muitas horas ali sem falar com ninguém”, perguntou-me se queria que me comprasse algo para comer. Como lhe indiquei que não com um suave movimento de minha cabeça, preguntei se queria beber mais água já que podia ir comprar mais uma garrafa antes de seguir seu caminho. Concordei e ela desapareceu por entre as pessoas. Regressou durante poucos minutos, e enquanto me oferecia água, me perguntou se queria que me liberasse".
"Neguei com a cabeça, ao que ela respondeu? “Não podes seguir estando assim embaixo do sol. Pode passar mal. Vou te soltar” e começou a incitar as pessoas presentes a que me liberassem. Formou-se um debate. Alguns não estavam de acordo, diziam “Não lhe podem baixar, ele tem que pagar sua promessa”. A maior parte da população de Salvador da Bahia, com sua grande herança africana e embebida cotidianamente no culto do candomblé, o mais próximo para eles a uma performance, é o pagar uma promessa a um Orixá. É o que veem e entendem. E geralmente, se algo ou alguém rompe a cotidianidade do dia com uma ação, assumem essa situação como tal, apoiados em muitos casos, desde a palavra, a quem está executando seu pagamento".
"Mas a mulher conseguiu convencer aos presentes, e enquanto vários homens inclinavam com força a balança até meu lado (agora “nosso lado”) aproximando-me ao solo, ela começou a desatar os nós da rede. Mas como os minutos passavam e ela não conseguia liberar-me rapidamente de ali, pediu uma faca “Cadê a Faca!” gritou, e algumas pessoas foram buscar pelos postos de comida próximos. Alguém regressou com uma navalha e a mulher começou a cortar rapidamente um lado da rede, até que o o buraco foi grande suficiente. “Agora, sim quer, já pode sair”, disse. Mas ao tentar colocar-me de pé, meu corpo não respondeu. Me doíam minhas pernas e depois de cada tentativa caia novamente ao chão. Então um homem me carregou como se fosse uma criança. E eu me deixei carregar sem oferecer resistência. Queria deixar-me levar ate onde eles quisessem. Não mexia nem sequer meus braços, deixando cair-me ao lado de meu próprio torso".
"Então o homem que me carregava, tomou minhas mãos e as levou ao seu pescoço para que o abraçara, e assim, como se carregasse a uma criança dormindo, me retirou de dentro da rede enquanto os demais ainda tiravam da mesma os ossos e a carne, presentes em, na rede do outro extremo, elevavam o mais alto possível, quase como se voassem sem peso. Então o homem me levou a um banco próximo mas as pessoas começaram a gritar que não, que ali não. Que o banco em baixo do sol estava quente e que podia queimar-me. Então me levou a outro banco em baixo da sombra de algumas arvores e com suavidade me deixou ali recostado".
"Meu corpo doía muito. Dentro da rede, havia tentado perder a consciência dele, evitando assim sentir a dor. Mas agora…cada movimento era doloroso. Estive ali por mais de 10 minutos, até que Juan, meu amigo que havia estado fotografando, se aproximou correndo- Era a única pessoa da produção presente no lugar, e sendo neste momento descoberto pelas mulheres tomando fotos a uma distancia, havia optado por esconder-se evitando converter assim a ação em espetáculo. Havíamos falado já muito sobre isso e de como as vezes a câmera de fotos o vídeos presente no lugar pode ser associada a a ação modificando-a. Mas desde onde ele estava, ninguém o via, mas também ele não via nada, assim que se surpreendeu quando observou que uma das redes já estava vazia antes de que se cumprira as 8 horas pautadas e que um grupo numeroso de pessoas me rodeava no banco. Acreditando que me havia desmaiado, veio correndo com água".
"Mas sua preocupação desapareceu quando nos olhamos mutuamente e lhe indiquei com meu dedo índice que seguisse tomando fotos. Um código que por sorte ele compreendeu rapidamente. Me deixou a roupa dentro de uma sacola e voltou a desaparecer. Eu segui um tempo mais ali, tentando recuperar o movimento de meu corpo. Uma mão foi colocada em meu ombro direito. Virei minha cabeça e vi a mulher que havia iniciado o processo de liberação. Se aproximou do meu ouvido vindo por detrás e disse “Não sei qual era tua idéia, mas se teu propósito era comover as pessoas, conseguiste. A gente não pode seguir seu caminho deixando morrer a alguém baixo ao sol”.
"Olhamos nos olhos um do outro e lhe agradeci, esta vez com palavras. “Gracias”, lhe disse, e com um aperto de mãos antes que ela desaparecesse entre as pessoas. Um metros adiante, a balança quase não tinha espectadores. Já sem meu corpo fazendo contrapeso, os ossos e a carne ficaram pelo chão ainda presos, enquanto a rede que me tinha retido se balançava no alto, movida suavemente pelo vento. Feliz e emocionado com essa metáfora, me vesti e me afastei pouco a pouco deixando as pessoas falando entre elas. Uma imagem, pouco antes de sair da praça, me entristeceu. Um homem negro estava dormindo no chão. Sozinho. Com roupas velhas e rasgadas. Sem ninguém a sua volta. Invisível para a sociedade".
*Instalação Performática durante o festival MOLA (Mostra Osso LatinoAmericana de performances urbanas), 28 de Septiembre de 2010, Salvador, Bahia, Brasil. Fotos de Juan Montelpare. Texto traduzido por Bruna P. Jung.
+ Facebook: http://www.facebook.com/cao.santiago
7 comentários:
Também não saberei explicar a sensação que isso me causou. A arte as vezes nos fere.
Um artista que se pode usar tranquilamente a o termo "visceral"!
Veja o Facebook do Cao. Lá há outras performances.
Este ato de ajudar "quem pode" me foi percebido semana passada, no ônibus...
Me lembre sobre este fato para eu te contar detalhadamente.
=*
Vou olhar. Um artista, né? Em todo o sentido da palavra.
Vou olhar. Um artista, né? Em todo o sentido da palavra.
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